Materializado por: Natália Pavlinscenkyte 03 outubro 2013


O papel das mulheres começa a mudar.

Até 1945, o Japão era bem diferente do que é hoje: Era governado por um deus vivo, e toda a sociedade era baseada no Sistema Ie, algo que pode ser entendido como "família". Aquele núcleo social composto  por avós, pais, filhos, netos, genros, noras, etc. Todos morando na mesma casa e servindo a uma hierarquia de poder e privilégios: os homens antes das mulheres e os mais velhos antes dos mais novos. Essa hierarquia refere-se a tudo: desde o direito a fala até a ordem do banho. Segundo o sistema, por exemplo, o filho mais velho recebia toda a herança dos pais (negócios, terras, dinheiro) e os outros irmãos não recebiam nada. Quando uma mulher casava, ela realmente deixava sua família e entrava na família do noivo, recebendo assim, novos pais e mais obrigações. Como nas antigas sociedades, a mulher era moeda de troca, a família tratava dos casamentos visando acordos políticos e financeiros. Essa maneira de agir e pensar se estendia por toda a sociedade japonesa, até culminar na figura do Imperador, que seria o "Grande Pai" de todos.
Só após o fim da II Guerra que as coisas começaram a mudar, onde as mulheres tiveram direito á voto, e puderam se candidatar a cargos políticos, e a constituição de 1947 define a igualdade de direitos entre homens e mulheres e promove a liberdade do casamento, ou seja, as mulheres agora poderiam se casar somente se quisessem.

A Princesa e o Cavaleiro.

Numa terra onde apenas homens podem governar, uma menina é tratada como futuro rei. Safire, a princesa, é apresentada a todo reino como um menino, uma farsa que visa combater de frente um duque terrível, que seria o próximo na linha de sucessão ao trono.
Mas ao fazer quinze anos, Safire conhece o príncipe Franz e se apaixona. Agora o futuro de seu reino e de seu coração estava em suas mãos. Este é o enredo-base de A Princesa e o Cavaleiro (Ribon no Kishi). A historia de uma heroína que possuía dois corações, lutava com espadas, usava uma peruca exageradamente glamourosa e vivia um amor impossível, foi  escrita e desenhada pelo "deus do mangá" Osamu Tezuka.
Antes das aventuras da princesa Safire, as historias escritas para meninas eram todas escritas e desenhadas por homens, e assim, as historias eram baseadas na opinião masculina. Sempre se tratavam de historias onde uma garota sofria, e ansiava pelo casamento e maternidade.
Este mangá deu voz ativa para as heroínas e propôs as duas leitoras que lutassem pelo o que achassem certo, mesmo contrariando os desejos dos pais e da sociedade. Esta certo que no fim da historia, Safire se torna efetivamente mulher, com um só coração e se casa. Mas estamos falando de 1953. A Princesa que também era cavaleiro foi uma revolução.
Foi a primeira historia longa para meninas. Se antes duravam dez páginas ou menos, Ribon no Kishi durou 3 anos. Ele introduziu os olhos grandes, os corpos longilíneos e os cabelos espetados. Foi essa história, voltada ao público feminino, que foi a base da estética que iria moldar a industria do manga como um todo.

A Rosa de Versalhes.

Nos anos 70, houve um intenso movimento feminista, as mulheres queriam mais do que serem tratadas como mãe ou como objeto sexual. Além da luta para serem respeitadas e valorizadas nos ambientes profissionais, haviam suas necessidades pessoais. O casamento por amor era uma novidade, e se tornou uma tendência manter uma relação de amizade entre os conjugues. E qual mangá que é a idealização desta nova mulher japonesa? Lady Oscar!
Ambientada nos anos que precedem a Revolução Francesa, Berusaiyu no Bara (A Rosa de Versalhes) conta a historia de Oscar, uma mulher criada como homem pelo seu pai, que se torna chefe da guarda francesa, responsável pela segurança de Maria Antonieta. A historia gira em torno do amor (real) de Maria Antonieta por um conde sueco e, principalmente, em torno do amor de Oscar e André (ambos fictícios). Este mangá foi tão importante que quando Lady Oscar (assim chamada pelos fãs) morreu, houve uma comoção generalizada: Algumas classes tiveram suas aulas canceladas, porque as meninas não conseguiam parar de chorar, houve quem ficasse tão abalado que não conseguiu sair de casa durante dias.
Corajosa e valente, Oscar havia feito uma carreira militar de prestígio por meios próprios; conhecera o amor na forma de seu criado, André - que era um amigo de infância; diante das injustiças do mundo se torna revolucionária e morre defendendo seus ideais na queda da Bastilha. Além de loira, com cabelos longos e fartos, bela em sua androgenia, Lady Oscar era a representação exata do ideal da época onde os papeis sociais pré-determinados estavam sendo discutidos.

Anos 80.

Existe no pensamento japonês, de forma enraizada, que a pessoa mais adequada para cuidar das crianças, e isso justifica o afastamento desta do mercado de trabalho, é a mãe. Devido a isto, o governo incentiva as mulheres casadas a serem "do lar", recebendo um auxilio financeiro. Parece bom, não é?  Mas com o tempo os filhos cresciam e saiam de casa e assim as mulheres se sentiam muito sozinhas . Foi percebido uma grande insatisfação das mulheres no que seria seu papel social, e isso gerou grandes questionamentos sobre a divisão sexual do trabalho.
E qual situação da heroína nos mangás em plenos '80? Bem, digamos que neste momento de grandes questionamentos, a maior heroína da época era um homem!
Ranma Saoteme, do mangá  Ranma 1/2, é um garoto de 16 anos que caiu em uma das Fontes Amaldiçoadas de Jusenkyo, por isso se transforma em uma versão feminina de si mesmo quando molhado com água fria, mas volta a ser homem ao ser molhado com água quente. Sendo disputado por quatro noivas diferentes, e por vários homens que caem em seus encantos na forma feminina.
Novamente está presente a dualidade de gêneros na mesma personagem, mas ao contrario de se parecer um homem (Lady Oscar), ou de se disfarçar de homem (Princesa Safire) Ranma é homem. Pelo menos a maior parte do tempo. O contrapeso da questão está na figura de Akane Tendo, estudante que apesar de ser extremamente cortejada pelos garotos da escola, repele os homens - a custa de muita pancadaria por sinal, dizendo que só vai sair com quem vencê-la na luta. Eça é a filha mais nova e herdeira do Dojo de sua família, e foi prometida como noiva para Ranma,apesar de ambos repelirem essa ideia. Acontece que quem a vence pela primeira vez na vida é justamente Ranma na sua forma feminina. Ao descobrir a verdadeira situação do seu "noivo", Akane passa o restante dos episódios tentando se tornar uma lutadora mais eficiente - e não conseguindo; e Ranma tentando deixar de se transformar em mulher e vice versa.É curioso notar que enquanto o Estado Japonês incentiva as mulheres a desempenharem o papel de dona de casa, a família Tendo faz o mesmo com a jovem Akane, mas esta recusa a situação. E apesar de ser a filha mais nova, é a herdeira. Ou seja, aquele Sistema Ie citado no inicio da matéria já não vale mais.

Anos 90.

Em 1992, Naoko inicia Sailor Moon, que durou cinco anos, 18 volumes publicados, 200 episódios e desenho para TV, 49 episódios em uma serie live-action, 11 jogos de vídeo game e alguns  filmes, foi a resposta cultural da "bolha econômica"  que vivia o Japão e os japoneses. Em 1993, estreou uma versão musical da série, que só se encerrou no inverno de 2005. E com as atuais informações de re-lançamento em DVD no Brasil e no mundo, a bela garota guerreira Sailor Moon (Bishojo Senshi Seera Muun) ainda vai continuar a lançar sua Tiara Lunar durante anos.
A historia é simples, e confusa, e repleta de referencias, e é a cara de seu tempo.
Indo para a escola, Usagi Tsukino, de 14 anos, encontra uma gatinha sendo alvo de maldades de uns garotos na rua, ao ajuda-la, a gatinha lhe diz (sim, a gatinha fala) que ela é uma guerreira da lua. E não menos, existem outras guerreiras que também tem 14 anos e ela tem que juntá-las numa equipe para poder encontrar a Princesa da Lua que está perdida na Terra. E não menos, durante os episódios ela descobre que é na verdade a reencarnação da Princesa da Lua. E não menos, durante as aventuras, todos vão morrendo para ajudá-la a conseguir o Cristal de Prata. Que ao conseguir o mesmo ela ressuscita a todos e escolhe viver como uma garota comum. Assim termina a primeira  das cinco temporadas.
A historia oferecia para as crianças cenas bem desenhadas de transformação e aventuras cativantes; para as mulheres, referenciava frustrações e sonhos amorosos ; para os homens, garotas bonitas com pernas de fora e usando uma "roupinha sexy". Além dessa vontade de agradar a todos, ainda oferecia relações amorosas com diferenças razoáveis de idade, um casal lésbico adolescente de heroínas e um trio de cantores que quando manifestavam seus poderes, se transformavam em mulheres que usavam pouca roupa de couro.
Este shoujo e suas personagens personificam, e muito, as garotas de sua época. Em plena "bolha econômica", o publico alvo tinha nascido e sido criado num período que o Japão vivia numa era de prosperidade inédita e única no mundo, esta geração dava (e ainda dá) uma grande importância ao consumo, ao vestuário de grife, e há um ligeiro descaso com as relações humanas.
Não esqueçamos que como Safire, Usagi  também é uma princesa, mas não corre os mesmos perigos como Lady Oscar , Usagi combate a injustiça, mas não sozinha e não morre no final; como Ranma e Akane. Usagi tem um objetivo e se esforça, mas convenhamos, fazer isso usando os poderes da Lua, um bastão mágico, uma tiara afiada e um gato falante... bem, me parece mais fácil.
Não estou jogando contra a "Sailor Moon", porque particularmente, eu adoro. As impressões negativas se dão devido ao fato de não haver ideologia proposta neste mangá especifico. E isto é o reflexo do seu tempo.

Para cada época um mangá.

Ribon no Kishi começou a ser publicado fazia menos de um ano que as Forças Aliadas tinham desocupado o Japão, Stalin tinha acabado de morrer e o mundo estava incerto  sobre qual seria a hegemonia político-bélico do mundo; a nova Constituição garantia a igualdade entre os sexos e tudo isto estava, de certa forma, representado no mangá.
Berusayu no Bara veio ao público durante um período de orgulho, de uma autoestima reconquistada, o inicio da década foi marcado pelo suicídio de Mishima e pelas cenas da política invadindo a Universidade de Tóquio. O movimento feminista toma um corpo expressivo que influencia o mangá assumidamente.
Se em Ranma 1/2 a ideologia é um tanto egoísta, pois não existe nenhum reino a ser defendido, e se todos os pais da historia são ridículos e nenhum dos herdeiros homens prestam para esse papel, e se as mulheres é quem são as personagens valorizadas, incluindo a 1/2 mulher, é porque o sistema Ie estava mais do que falido, era motivo de riso.
Em Sailor Moon a despreocupação com a vida é a grande evidencia e o legado de uma geração nascida e criada dentro de um "milagre econômico" . Vide que a própria autora, da mesma geração, se casou com outro autor rico de mangás, e publica vagamente pequenos trechos que contam de sua vida dirigindo seu Porsche , pela noite, despreocupada.
Há nos anos 90 uma lacuna ideológica que irá se manifestar nos anos 2000 nas imensas fragmentações de historias que evidenciam as questões pessoais nos mangás no novo milênio. Um sintoma deste caso são as novas questões sociais como o hikikomori (uma espécie de isolamento social) e o Enko Kosai ( de uma maneira simplificada: uma espécie de "namoro patrocinado", podendo haver sexo ou não) - que , alias, já foram temas de alguns mangás - e que são ápices deste falta de perspectiva que o jovem japonês enfrenta e uma problemática nas atuais relações entre homens e mulheres.

Concluindo.

O  fato do Japão ter o maior mercado de quadrinhos do mundo, permite que as questões sociais pungentes sejam retratadas de maneira quase instantânea. E os assuntos pertinentes as mulheres, não apenas a feminilidade, mas também sua postura e posição na sociedade, além de seus sonhos e conquistas sempre foram temas que geraram boas historias.
A mulher japonesa conquistou dentro deste mercado de trabalho, reconhecimento e status, que não faz par com nenhum outro. E não apenas no campo financeiro, mas também profissional e social.
Os temas que respondem aos anseios pessoais e sociais, transformados em mangá, criaram com o seu publico quase uma simbiose, uma empatia tão intensa que por vezes falar de um mangá é também falar de alguém, ou de um grupo de pessoas.
A ideia que guiou esta matéria foi  a de mostrar que é possível entender um povo, seu contexto histórico e suas mudanças no agir e pensar, através de sua arte, no caso aqui, em suas historias, marcadas para sempre em papel e tinta.

Fonte: Neotokyo


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